Enfim, a vida continua, vamos ao que interessa. Peço a compreensão de vocês.
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Pela
manhã, como de praxe, Dani acordou antes do despertador tocar para preparar o
café das garotas. Ainda que não tivessem a
convivência adequada à noite, nas primeiras horas do dia, à mesa, eram uma família digna
de comercial de margarina, tão unidas e felizes quanto pudessem ser.
Apesar
de Luísa choramingar pelo término do Chaves, Daniela conseguiu contornar este problema e,
aparentemente, evitou o início da
terceira guerra mundial. Ficou combinado que a caçula ganharia um presente no
fim de semana caso se comportasse e não chorasse mais. Evidentemente, a mãe nem
sabia qual presente daria à filha,
mas não queria iniciar o dia se indispondo.
Antes
de Amanda sair para levar Luísa na
creche e ir para a escola, Dani lhe deu dez reais para pagar a diária do DVD, além de fazer
as recomendações que repetia diariamente e que Amanda, em piloto automático, apenas assentia.
Por
fim, depois que as filhas saíram,
Daniela aprontou-se rapidamente e também saiu.
Não era do tipo que se atrasava, principalmente quando tinha cliente pela
manhã. Também não era muito fã da
primeira-dama, a achava fútil e prepotente, tal qual o
prefeito, mas serviço era serviço. Não faria juízo de caráter.
Irônicamente,
o ônibus em que Daniela estava precisou pegar uma desvio em Mariluz, bairro
centro-norte de Imbé, devido a um bandeiraço
matutino em prol da candidatura à reeleição
de Pedro Dias. O caminho pela RS-786 iria atrasar a chegada de Dani em pelo
menos vinte minutos.
- Que
droga! [pensou em voz alta] Quem faz bandeiraço numa QUARTA às 8:45?!
***
- Boa
tarde! [disse Janaína, de forma debochada, quando Daniela
chegou ao salão, às 9:25]
Daniela
devolveu o cumprimento apenas com um aceno e um sorriso, elementos que seus
amigos sabiam ser algo quase cínico, mas
que para a primeira-dama soaria como um pedido de desculpas.
Quando
Janaína chegou, pontualmente às nove horas, Leonardo já tratou de começar os trabalhos nos cabelos da cliente. Também não tinha muita afeição pela mulher, mas estava interessado é no pagamento que receberia, sobre tudo nas gorgetas. Beth
chegou a se oferecer para fazer as unhas, mas, como não tinha o nível artístico de Dani, fora rejeitada.
- E
então, dona Janaína, qual cor vai querer?
[perguntou Daniela, simpatissíssima para
quem não a conhecia]
- Ah,
pode ser aquele vermelho que fiz a última vez... [dizia Janaína, quando
Léo fez uma pausa para que pudesse
escolher o esmalte certo. Então, os olhos da mulher se fixaram em um vidro
específico] Não! Eu quero AQUELE vermelho!
O vidro
que Janaína fitava com olhar fascinante era o
mesmo que encantara a própria manicure no dia anterior.
Aquele tom de vermelho se sobressaia aos demais, tal era sua beleza. Ao pegar o
vidro para iniciar o serviço, Dani podia jurar que o mesmo estava aquecido pela
intensidade e força do esmalte colorido. Bonito demais para esta vaca, pensou.
O dia
estava com céu de brigadeiro. Depois da
tempestade sempre vem a bonança, dizia o velho ditado. Seria uma tarde que
daria praia, pensava a manicure. Enquanto trabalhava, Dani refugiou-se nela
mesma, ignorando o papo furado da mulher do prefeito, imaginando-se à beira-mar com as filhas, promessa que fizera e adiara inúmeras vezes no último
verão, e respondendo com monossílabas
esporadicamente. Se estivesse um dia cinzento, imaginaria-se em uma tarde em
casa, com Amanda e Luísa, vendo um DVD (poderia até ser o do Chaves!) e comendo pipoca. Afinal, qualquer refúgio interno era melhor do que ouvir conscientemente a falação
fútil e desenfreada de Janaína.
De
fato, a cliente era apenas uma esposa troféu.
Só acompanhava o marido em viagens para
servir de adorno, e não se importava com isto. Tampouco dava sinais de se
incomodar com os falatórios sobre a diferença de idade
de vinte e sete anos entre eles. Sua vida era ter um cartão de crédito com um belo limite, visitar locais chiques, ter as
melhores roupas, frequentar os melhores hotéis
e, o mais divertido, contar tudo para os menos afortunados e causar inveja.
Nem
Daniela, nem Janaína perceberam quando, por menos
de cinco segundos, uma nuvem passageira cobriu o sol, criando uma sombra sobre
o salão que logo se dissipou. Mas ambas perceberam que a temperatura caiu uns
cinco graus repentinamente, já que quase
coordenadamente sentiram um arrepio na espinha dorsal.
- Léo e a mania de ligar o ar no mínimo! [disse Daniela]
O
aparelho de ar condicionado localizava-se na parede atrás do cabeleireiro. E marcava exatos 25°.
***
Perto
das 11 da manhã o trabalho de Dani havia sido concluído. O esmero era impressionante e louvável. As decorações em amarelo e preto sobre o esmalte
vermelho, as cores do partido do atual prefeito, assentaram bem, tendo a mulher
escolhido tribais indistintos e, no polegar da mão direita, um símbolo chinês que
significava "fortuna".
Enquanto
Léo dava os últimos retoques no penteado de Janaína, Dani foi consultar a sua agenda. Lembrava-se de ter um
serviço marcado para o meio-dia, mas quis confirmar. Encontrou o nome da
cliente riscado.
- Ué?! A Thaís desmarcou? [perguntara à Beth]
- Sim,
ela me mandou um WhatsApp pela manhã, remarcou para sexta. Tudo bem?
- Sim,
sem problema. Vou aproveitar e marcar para a Amanda. Quinta tem Feira de Ciências, aí já faço as unhas dela hoje, já que não sei que hora vou chegar em casa depois do trabalho.
As
engrenagens do destino novamente funcionavam à todo vapor, e o rumo da vida de Daniela, Amanda e até da pequena Luísa seria
alterado drásticamente com um punhado de
palavras enviadas através de um aplicativo de mensagens
eletrônicas: "Filha, vem aqui no salão a uma hora. Marquei horário para ti".
***
Sem
nenhum evento político, os ônibus puderam trafegar
novamente pelas rotas pré-determinadas. Eram 13:25 quando
Amanda e Luísa desembarcaram no ponto mais
próximo ao salão da mãe.
-
Promete que deixa eu pintar as unhas também?
[perguntara Luísa. A caçula era fascinada pela
arte. Apesar de Amanda também gostar,
Dani sabia que Luísa é quem seria sua sucessora]
- Sim.
Anda, mana, senão vamos nos atrasar!
Amanda
sabia o quanto a mãe era ocupada, e estava ansiosa: faria todas as amigas
morrerem de inveja. Sempre ficavam roxas de ciúme cada vez que Daniela decorava as unhas dela.
Ao
chegarem no salão, cumprimentaram Léo, que
estava saindo para almoço. Daniela estava no sofá, lendo uma velha edição da Revista Contigo. Luísa desvencilhou-se da mão da irmã e foi correndo abraçar a
mãe.
- Mãe!
Te amo!
- Também te amo, filha. Como foi na creche?
- Bom!
A gente olhou o Chaves! A tia levou um DVD com um monte de episódio!
- Uau!
Por isto que tu não chorou?
- Não,
mas porque a mana falou que, se eu não chorasse, a mãe ia pintar a minha unha.
Dani
não pode deixar de sorrir, abraçar e beijar a caçula. Em seu depoimento à polícia na tarde seguinte, Léo descreveria esta cena.
- E
então, Amanda. [perguntou Dani] Já escolheu
a cor?
- Já, mãe. Vou querer este vermelho que tu tá usando.
É
impossível resistir a ele, pensou Dani. Será que aquele velho esmalte seria tendência? Será que ela o
havia ressucitado para brilhar?
- Ah!
Eu também! [disse Luísa] Todo mundo de vermelho, igual o Chapolin!
Dani e
Amanda riram com gosto, enquanto a garota se instalava na poltrona de serviço.
Novamente, quando Daniela pegou o velho frasco, uma grande e densa nuvem tapou
o sol por uma fração de segundos, seguida por uma queda brusca na temperatura.
O ar condicionado ainda marcava amenos 25°, e
Dani estranhou o arrepio que sentira. Coisas da idade, concluiu, enquanto
ajeitava-se para manicurar as unhas da filha.
***
Um
Logan escuro com um adesivo escrito DELEGADO TOFFANI PREFEITO e placas de Porto
Alegre parava no estacionamento do Cemitério Municipal de Tramandaí,
cidade vizinha a Imbé. O motorista, um atraente jovem
senhor, dirigiu-se a loja de flores e velas que comodamente instalara-se onde
antigamente era a Lancheria Vegas.
Todos
os anos aquele homem repetia o mesmo ritual, na mesma data, há pelo menos 25 anos. Estar na reta final da campanha política onde era candidato à prefeito em Torres, cidade há duas
horas de distância de Tramandaí, não iria
impedir de visitar o túmulo de alguém por quem ele nutre tanto carinho, tantos bons sentimentos.
Apesar de já ser casado há duas décadas, certas paixões nem a
morte consegue fazer esquecer.
- Pai?
[uma voz o chamava na entrada do cemitério]
- Sim,
Elisa.
- Posso
ir contigo? Não quero esperar no carro. E cemitérios me dão medo... [disse
Elisa, com um sorriso trêmulo, enquanto roía as unhas curtas, vício
hereditário do qual ele não se orgulhava]
Eduardo
sorriu. Elisa já tinha 14 anos, dois anos a
menos do que a garota que ele visitava teria eternamente. Não haveria como elas
se parecerem, mas ele achava que, de certa forma, tinham alguma semelhança na
parte da ingenuidade.
-
Claro. Não vamos demorar, filha.
Fim da terceira parte. Uma ótima manhã, tarde, noite, madrugada, aonde for que você estiver, um ótimo dia, fiquem ligados para a quarta parte!
*EXCLUSIVO CREEPYPASTA PURO / POR WAGNER DE LA CRUZ*
*EXCLUSIVO CREEPYPASTA PURO / POR WAGNER DE LA CRUZ*