quarta-feira, 23 de novembro de 2016

A Arte de Jacob Emory

Histórias de fantasmas? Não, nós não temos essas coisas por aqui. Mas nós temos a história de Jacob, e isso é o que tem de mais parecido.

... Você realmente quer saber?... Bem, eu não deveria contar a você, mas tudo bem, só não interrompa. Eu não tenho paciência pra isso.

Como descrever Jacob Emory... bem, acho que você pode dizer que ele era o tipo de cara que podia facilmente passar despercebido. Não estou querendo dizer que ele era um jovem ruim, de jeito nenhum – muitas pessoas nessa cidade achavam que ele era a pessoa mais confiável para executar pequenos serviços nesse estado – mas ele nunca se destacou em nada. Ele era a prova viva por trás da frase "ajudante de tudo, especialista em nada". Grande parte disso se devia à própria falta de interesse dele. Ele se interessava por praticamente tudo que essa cidade tinha a lhe oferecer: automóveis, operação de rádio, administração de loja, o que fosse, mas nunca se fixava em nada. Seus amigos e colegas de trabalho perguntavam a ele inúmeras vezes o motivo disso, mas todos recebiam a mesma resposta meia-boca: "Não era o suficiente". Não é necessário dizer que ou os amigos dele eram muito pacientes ou nunca tocavam nesse assunto.

Provavelmente era inevitável, naquela época, que Jacob fosse embora para o exterior. Eu não me lembro pra onde ele foi, mas eu acho que a Gertrude, do fim da rua, sabia antes de falecer – agora você terá que ir atrás de outra pessoa se um dia ficar curioso. De qualquer forma, ninguém tentou impedi-lo. Todos acharam que uma pequena viagem despertaria a ambição nele, ou pelo menos a faria crescer até que não fosse mais um problema. Inferno, nós até fizemos uma festa de bota-fora pra ele, o que eu achei muito legal da parte de todos.

Mas então, ele ficou fora por... seis, sete anos? Não me lembro. Você vai ter que verificar isso com outra pessoa também. Enfim, ele voltou, e tinha mudado, obviamente bastante. Ele estava amável, cheio de energia, sorrindo o tempo todo, e rapidamente descobrimos por que. Ele nos mostrou um souvenir que trouxe com ele – um bastão preto sólido, do tamanho de um lápis, mas com textura de giz. Todos nos perguntamos por que raios uma coisa tão simples provocaria tanta alegria na vida dele, até que ele nos deu uma demonstração. Ele pegou um pedaço de papel e com o seu bastão – Deus, deve ter uma palavra melhor pra isso – ele... desenhou um círculo simples.

O círculo caiu e repousou na borda do papel, como uma pedra. Ele não caiu do papel, mas se movia por ele, como se fosse um filme velho projetado em uma tela.

Filho, eu sei o quanto isso parece loucura, e se você quiser bancar o cético, então pode deixar um velho com suas doideiras. Mas eu sei o que eu vi, mesmo que todos estejam tentando esconder, e aquela pedra que ele desenhou caiu. Jake até passou o papel pra gente, e quando o passávamos de mão em mão, o círculo rolava conforme o papel ficava inclinado. Nenhum de nós tinha palavras pra isso – Inferno, o que poderíamos dizer? – mas ele continuou desenhando uma demonstração depois da outra pra gente, figuras de palitinhos fazendo espetáculos e peças, fazendo tudo, desde lutar umas com as outras até fazer pirâmides "humanas" perfeitas, e todos achamos aquilo incrível. Isso era todo o incentivo de que ele precisava – ele anunciou que planejava fazer shows pra poder pagar o aluguel e comida, onde ele desenharia tudo o que a platéia pedisse. DISSO nós falamos um bom tempo, e ele eventualmente nos convenceu que seria seguro, que seus desenhos seriam éticos, que a prática seria única e lucrativa, e que a atenção não iria além das fronteiras da cidade.

Pobre Jacob. Se eu não tivesse me deixado levar pelo momento, eu poderia ter visto os sinais bem ali, naquela hora, e salvo o miserável, quebrando aquela coisa terrível no meio. Mas eu era jovem, todos éramos, e não vimos problema em encorajá-lo com o que achamos que era uma experiência a ser dividida com todos. Agora, ele não tinha nenhum rádio ou conexão de TV, saiba disso, e a internet não chegaria antes de uma década. Então ele fez o que todas as pessoas sem grana fazem – ele anunciou o show usando panfletos. Panfletos podem não significar nada pra vocês da cidade grande, mas em uma cidade pequena, eles ganham destaque de tempos em tempos, e melhor ainda, Jacob conseguiu destacá-los desenhando pequenas figuras que pulavam e faziam de tudo pra chamar a atenção das pessoas. Seu primeiro show deve ter atraído cerca de sessenta pessoas, provavelmente muito mais do que isso.

E seus shows eram fantásticos. Alguém gritava uma cena de uma peça ou algum esquete de comédia e a mão de Jake voava pela parede branca como um pássaro. Ele estava se contendo quando desenhou aquela pedra, com certeza. Suas ilustrações eram sempre exatas, e ele podia desenhar uma figura humana incrível em minutos. Parando pra pensar, eu não me lembro de nenhuma de suas cenas demorar mais do que dez minutos pra ser desenhada. Eram cenários muito bem feitos – não dava só pra ver um cavaleiro invadindo um castelo, Jake desenhava o interior também, como se fosse um bolo de noiva partido ao meio. Então era possível ver o cavaleiro escalando os muros, lutando pelos corredores das masmorras, voltando com a princesa e saltando do parapeito do muro sobre seu cavalo de fuga, tudo em completo silêncio.

Não era realista, mas isso era parte da graça – nenhum de nós foi até lá esperando algo realista. Quando uma cena estava terminada, ou os personagens saíam de vista pela parede ou ele cobria a parede com tinta branca. Isso era bom, de certa forma – dava aos shows um tempo limite, pois quando ele terminava as quatro paredes da sala, todos sabiam que o show estava terminado até que as paredes secassem.

Enquanto isso, Jake estava mudando pra pior. Eu mencionei que, quando ele voltou, estava extremamente energético. Bem, essa energia, essa vitalidade ou fervor ou como você quiser chamar, isso nunca foi embora. Nem por um instante. Longe disso, só pareceu aumentar dentro dele, e ele gostava disso. Seus olhos ficavam mais abertos, ele dormia cada vez menos, suas afirmações e opiniões ficavam mais radicais e delirantes, e apesar de nunca ter sido uma companhia fácil, ele estava começando a deixar as pessoas irritadas com sua presença.

Um ou dois meses se passaram e a platéia de Jake cresceu como um incêndio. Praticamente todos da cidade pagavam pra ver a arte do Jake em ação, e ele tinha que alugar lugares cada vez maiores pra acomodar todos. Ele agora não parava depois que uma cena estava completa – ele passava direto pra próxima, indo para o próximo espaço em branco na parede, às vezes causando o intrigante efeito de misturar as cenas, o que a platéia adorava. Os temas ficaram mais selvagens e imorais, os monstros ficando mais bizarros e criativos, os lutadores usando armamentos impossíveis, tudo para agradar à platéia. Jake ficou mais indulgente, o que achamos ser consequência do dinheiro, e se tornou alcoólatra e mulherengo (aliás, nenhuma dessas duas coisas conseguiu diminuir sua vitalidade). Algumas dessas mulheres diziam que acordavam no meio da noite e o encontravam rabiscando com aquele bastão em um bloco de desenho, com um sorriso gigante e sinistro no rosto. E enquanto a maioria achava que ele estava simplesmente as desenhando nuas, há rumores de que uma ou duas mulheres conseguiram dar uma olhada nesse bloco de desenhos. Essas poucas anônimas supostamente disseram que aqueles desenhos não são, de jeito nenhum, desenhos de nudez, mas nenhuma delas, sejam que forem, disseram o que viram. E não se incomode em procurar pelo bloco ou pelos panfletos, eles já eram. Mas eu estou me desviando do assunto. O ponto é que ele estava enchendo a cara, e isso é importante, porque é essa bebedeira que iria arruinar tudo.

Na noite de uma de suas apresentações, quando ele ficou de frente com a platéia aplaudindo, ficou imediatamente visível a todos que ele estava completamente bêbado. Eu estava na fileira da frente e podia sentir o cheiro de whiskey a três metros de distância. O show começou, ele desenhou um monte de cenas que a platéia recomendou, quando no final alguém pediu que ele desenhasse a si mesmo. Todos aplaudiram a idéia, acho que eles estavam imaginando o que suas criaturas pensariam dele, e ele eventualmente obedeceu.

No momento exato em que Jake uniu as últimas linhas de seu casaco, cada um dos outros personagens, espalhados pelas vastas paredes, pararam e olharam para aquela ilustração. Namorados pararam com os beijos, palhaços pararam de rir, robôs pararam de lutar contra piratas, tudo parou e olhou para a ilustração de Jacob. A platéia silenciou quase que instantaneamente – eu me lembro da cara do Jake naquele momento, pálida, refletindo a terrível compreensão de seu erro, e procurando desesperadamente pela tinta branca que ele esqueceu de preparar antes do show. Todo o resto? Estavam olhando para o Jake falso.

Aquele Jacob enfiou a mão no bolso da jaqueta e tirou seu próprio bastão preto, e diante de todos que assistiam, desenhou uma porta. Ele empurrou de seu lado e a porta se abriu, permitindo que ele atravessasse a porta para o piso do auditório.

O resto foi um absoluto e infernal pandemônio. Pessoas gritavam e corriam para as saídas enquanto os personagens do Jacob, tanto os desenhados nas paredes quanto aquele que tinham sido apagados com tinta, saíam por sua própria porta, jogando tortas, atirando lasers, soprando fogo e veneno e tudo mais. Eu estava perto de uma saída de emergência e dei apenas uma olhada pra trás. Essa cena vai me assombrar para sempre.

Jacob Emory estava sendo arrastado por suas criações pela porta que sua cópia havia desenhado.

O auditório se incendiou, mas eu não faço idéia de quantos personagens escaparam, o que aconteceu ao falso Emory ou quantas pessoas morreram. O incêndio atraiu os bombeiros das cidades mais próximas em um raio de cem milhas – eles trouxeram a polícia, que trouxe o governo, que abafou tudo. Eles levaram os panfletos e qualquer arte feita por Jake, e fizeram todos jurar segredo, sob pena de prisão perpétua. Puseram a culpa do incêndio em um cigarro numa lata de lixo durante um jogo de basquete, e todos nós eventualmente seguimos com nossas vidas. Era como se Jake nunca tivesse existido.

Olhando pra trás, eu entendi tudo. Jacob não estava criando ilustrações. Ilustrações não se movem, muito menos atacam – são só imagens que as pessoas vêem, sombras feitas pra se parecerem com coisas reais. Jacob esteve criando vida – coisas conscientes, de verdade, em alguma dimensão alternativa, usando um poder que nunca foi feito pra cair em mãos humanas. Ele se embriagou com esse poder. Sua punição provavelmente foi merecida.

Acidentalmente, o governo fez merda em duas ocasiões diferentes. Eles fizeram um belo de um trabalho silenciando todo mundo, mas restaram provas. As ruínas ainda estão lá, sabe. As ruínas do auditório. Eu ouvi que eles vão começar a reconstrução em breve, o que irá apagar qualquer evidência que alguém poderia encontrar. Mas eu voltei lá uma vez, muitos anos depois do incêndio – só uma vez. No meio dos escombros, coberto de cinzas, eu vi algo se contorcendo. Olhei mais de perto. Era a mão de Jacob Emory na parede. Exatamente como era há três anos (suadas e calejadas, eu me lembro), mas estava constantemente se agitando, como se o corpo ao qual ela deveria estar presa ainda estivesse se contorcendo nas chamas.

Esse foi o primeiro erro. O segundo foram aquelas criações.

Como eu disse, eu não sei quantos escaparam, nem quantos os agentes do governo capturaram, mas eu só digo isso – Aqueles campos com grama alta na periferia da cidade? Não vá até lá. Nunca. Você estava querendo saber sobre essas criaturas brancas que você vê à noite certo?

Essa cidade não tem histórias de fantasmas.

Traduzido de: http://www.creepypasta.com/the-art-of-jacob-emory/
Tradução: Paulo Guimarães.

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